quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

RESENHA: DIAS DE LUTA - O ROCK E O BRASIL NOS ANOS 80

Capa da 2ª edição do livro
Lançado originalmente em 2002, com relançamento em 2013 (após esgotamento da 1ª edição), “Dias de Luta: O Brasil e o Rock dos Anos 80” faz alusão ao título do clássico da banda paulistana Ira, presente em seu segundo álbum “Vivendo e Não Aprendendo”, de 1986 e trata-se de um relatório informal cronológico da década citada, detalhando as origens do surgimento, ascensão, afirmação e queda do período em que o pop rock nacional ditou as regras no mercado musical e de entretenimento no Brasil, transformando o ritmo num produto vendável para um público até então pouco explorado como consumidor em potencial: o jovem.

Escrito pelo jornalista Ricardo Alexandre, que possui ampla experiência na cobertura cultural dos anos 90 pra cá, o autor elucida com detalhamento diversas questões e fatores que causaram essa explosão do rock como uma cena, assim como os excessos que causaram sua derrocada. Por não estar inserido como participante ativo da época o autor esbanja imparcialidade em análises e causos contados por artistas do naipe de Renato Russo, Paulo Ricardo, Leoni, Léo Jaime, Roger, Herbert Vianna, Dé Palmeira, entre muitos outros.

O início dessa explosão da cultura jovem em terras tupiniquins tem seu start com Rita Lee, no álbum que leva seu nome, de 1979. Hits como “Mania de Você” e “Doce Vampiro” foram o abre alas dessa identificação de um novo público pronto para ser explorado, coisa que nem os medalhões citados, nem os artistas em voga na época como Elis Regina, Gonzaguinha ou Ivan Lins conseguiam. Tampouco, as bandas de pop rock que são definidas brilhantemente por André Midani (messias das gravadoras na época) como rabo de geração, entre elas Herva Doce, A Cor do Som, Roupa Nova, 14 Bis e Rádio Táxi, bandas que apesar de competentes tecnicamente não conseguiram se comunicar nem com um novo público sedento por artistas com capacidade de usar sua linguagem, nem com os tradicionalistas da MPB.

Havia todo um clima de efervescência cultural no Rio de Janeiro no começo da década de 80, as discotecas já se mostravam enfraquecidas e a rapaziada ansiava por novidades. E foi o que ocorreu com o surgimento do Circo Voador, um ambiente construído para abrigar todo tipo de manifestações artísticas, de bandas de rock, grupos de dança, teatro e até mesmo exposições.

Capa do primeiro LP da Blitz
Diante desse ambiente, não tardou a surgir a primeira banda a estourar em âmbito nacional nos anos 80, a Blitz. Com membros oriundos do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, a banda capitaneada por Evandro Mesquita conseguiu lançar seu compacto no ano de 1982, com o clássico “Você Não Soube Me Amar”, que trazia uma nova linguagem, ácida e sagaz, com ritmo folk/reggae/rock e narrativa de história em quadrinhos atingiu em cheio a molecada ávida por novidades longe do blá blá blá intelectual dos tropicalistas. No mesmo ano a banda lançaria seu primeiro álbum cheio: “As Aventuras da Blitz”, que ainda trazia outro clássico “Mais Uma de Amor (Geme Geme)” que veio pra consolidar a banda como febre nacional, presente sábado sim outro também no programa do Chacrinha na rede Globo e fazendo turnês nacionais de grande proporção.


O sucesso da Blitz serviu para que as gravadoras finalmente abrissem os olhos para o universo que havia sido desbravado por Rita e expandido pelo grupo carioca, o que fez com que os executivos buscassem por outros nomes, o que veio a calhar em oportunidades pra gente como Gang 90 (já conhecida dos festivais de música), Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Lulu Santos, Os Paralamas do Sucesso e Lobão (egresso da Blitz), todos alcançando destaque nacional, uns de primeira, como o Kid, outros com alguma insistência, caso de Lulu, que já estava beirando os 30 anos e trabalhava em gravadora.

O sucesso das bandas gerou o surgimento de mais casas de show e discotecas para apresentações e o fortalecimento da Rádio Fluminense, incentivadora e primeira a botar a maioria das bandas dessa geração no dial.

Banner da 1ª edição do Rock in Rio
O auge desse primeiro momento do rock nacional na década de 80 se deu através do Rock in Rio, festival de proporções mundiais organizado pelo empresário Roberto Medina no Rio de Janeiro em 1985. O Brasil até então cenário miado de grandes shows internacionais teria oportunidade de ver grandes bandas do rock mundial em seu auge, como Iron Maiden,  Queen, AC/DC, Scorpions, entre outros gigantes da época. O festival que durou 10 dias possuía estrutura gigantesca da chamada Cidade do Rock e, entre os medalhões foram inseridas atrações brasileiras, dentre as quais bandas novas de pop rock, como Barão Vermelho, Kid Abelha, Paralamas, Lulu Santos e Eduardo Dusek.


Apesar das polêmicas das poucas condições oferecidas aos brasileiros, os artistas conseguiram se destacar entre mortos e feridos, de forma que o festival deixou de herança um culto exacerbado que dura até hoje às grandes bandas que vieram à época e o rock nacional no dia seguinte tomava de assalto a música brasileira, com bandas com agendas lotadas e altas vendagens de discos. O autor faz um curioso exercício de imaginar se Medina e sua trupe tivessem trazido o que realmente era relevante para a música jovem naquele momento, bandas como The Smiths, The Cure e U2. Qual teria sido a influência dessas bandas num festival do porte do Rock in Rio no gosto do jovem médio brasileiro? Nunca saberemos.

O sucesso absoluto do Rock in Rio fez com que cenas de outros lugares do Brasil conquistassem também seu espaço no mercado, como os paulistanos do Ultraje a Rigor, com seu arrasa-quarteirão “Nós Vamos Invadir Sua Praia” (título com uma clara alusão ao domínio dos cariocas no rock nacional), Titãs do Iê Iê (que somente se firmaram no terceiro álbum, o clássico “Cabreça Dinossauro”, de 1986) e do Ira (já sem o ponto de exclamação e o fenomenal Edgard Scandurra nas guitarras).; os baianos do Camisa de Vênus (que se tornaram um clássico sem se render à indústria) do clássico disco ao vivo “Viva”, de 1986; os gaúchos do Engenheiros do Hawaii e Replicantes; e os brasilienses da Legião Urbana, da Plebe Rude e do Capital Inicial.

Já com a cena consolidada e cada vez mais bandas surgindo era hora do rock atingir seu auge no mercado cultural brasileiro, e esse momento se deu em 1986, com os paulistanos do RPM e seu álbum ao vivo “Rádio Pirata Ao Vivo”. A banda que havia lançado o primeiro álbum “Revoluções Por Minuto” no ano anterior havia feito sucesso com singles como “Louras Geladas”, “Olhar 43” e a faixa título, porém ao decidir chamar Ney Matogrosso para produzir sua turnê e serem contratados pelo mega empresário Manoel Poladian, os músicos aumentaram suas ambições, com estruturas de som gigantescas, toneladas de equipamentos, gelo seco e tudo mais de melhor que se dispunha na época. A banda recém iniciara o processo de composição de um segundo álbum quando estourou nas rádios do Brasil inteiro uma versão pirata de “London London”, cover de Caetano Veloso. Ressentidos por não estarem capitalizando o sucesso (já que a música não estava no primeiro álbum e os compactos não faziam mais parte das estratégias das gravadoras) a banda resolve lançar um segundo registro ao vivo, fato tido como inédito no mercado musical mundial até então.
RPM no auge da popularidade

O disco ao vivo trazia em seu repertório os sucessos do único álbum lançado pela banda, somados à inédita “Alvorada Voraz”, à cover “Flores Astrais”, dos Secos & Molhados, além da famigerada “London London” e da instrumental “Naja”. O sucesso foi estrondoso, alcançando 3 milhões de cópias vendidas no decorrer dos anos, sendo até hoje um dos discos mais vendidos em todos os tempos no país.

 O sucesso do RPM foi gigantesco, digno de beatlemania, com histeria de fãs em toda cidade que a banda passasse, todos integrantes (principalmente o cantor e baixista Paulo Ricardo) se tornaram ‘sex symbols’, frequentavam todos programas de auditórios, eram capas de revistas e chegaram a estrelar um Globo Repórter especial, dedicado exclusivamente à banda.

Como era de se esperar de uma banda tão inexperiente, todos os excessos foram seguidos à risca, como manda a boa e velha cartilha do ‘sex, drugs and rock and roll’ e a derrocada veio logo. Em meio a desentendimentos e egos ultra-inflados, a banda se separaria em 1987, com retornos intermitentes desde então.

O sucesso estratosférico do RPM é apontado por diversos músicos, tais como Roger e Herbert, como um divisor de águas de todo aquele cenário do pop rock nacional, pois a competitividade e o ciúme entre as bandas tomou o lugar da parceria e cumplicidade do início da década.

Legião - capitaneada por Renato Russo
Oriunda de Brasília, a Legião Urbana foi outra banda a alcançar sucesso parecido com RPM, porém com comoção mais messiânica em torno do seu líder, Renato Russo. Ao invés de sex symbol, Renato era visto como um guru da geração, o poeta que muitos seguiriam durante toda década. Os álbuns “Dois”, de 1986, “Que País É Este”, de 1987 e “As Quatro Estações”, de 1989 ajudaram a ampliar essa aura, com a banda fazendo turnês cada vez maiores, chegando ao ponto da banda cansada de incidentes por falta de estrutura só realizar apresentações em grandes ginásios e estádios de futebol (situação pensada somente para bandas internacionais consagradas nos dias de hoje).


Cazuza - poeta exagerado
Outro pilar dessa geração foi Cazuza, vocalista do Barão Vermelho nos três primeiros álbuns da banda, deixou o grupo carioca pouco depois do Rock in Rio, em 1985, iniciando uma frutífera carreira solo, interrompida precocemente por sua morte em decorrência da Aids em 1990, aos 32 anos. Considerado outro poeta da geração, Cazuza possuía influências diferentes de Renato Russo, pois ouvia desde sempre muita música brasileira, era fã confesso de Cartola e Lupcínio Rodrigues, além de ser um ‘bon vivant’ adorava frequentar os bares e botequins cariocas sendo famosos seus porres homéricos e baladas desconcertantes. Apesar de ter falecido muito jovem, deixou canções que fazem parte do cancioneiro popular tupiniquim como “Maior Abandonado”, “Ideologia”, “Exagerado”, “O Tempo Não Para”, entre outras.


Apesar do surgimento de bandas interessantes até o final da década, como os cariocas do Picassos Falsos, Hojerizah e Uns e Outros; e os gaúchos do Nenhum de Nós a derrocada do pop rock nacional como movimento dominante na cena de entretenimento no Brasil foi inevitável. As razões são diversas, como a falta de comunicação por parte das bandas com o público, buscando cada vez mais fazer ‘o que desse na telha’ ao invés de expressar a realidade do dia a dia do povo; o amadurecimento das bandas que se distanciaram da ingenuidade dos primórdios da década; o surgimento de bandas de qualidade questionável nas mãos de empresários gananciosos das gravadoras; uma certa subserviência dos roqueiros aos tradicionalistas da MPB, como Caetano, Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento; vale ressaltar também o surgimento ou fortalecimento de ritmos com maior apelo popular como lambada, axé music e sertanejo, que rapidamente dominaram o mercado; outro fator foi o famoso jabaculê ou jabá, que nada mais é do que aquela verba fornecida pela gravadora para a rádio disponibilizar seu espaço para determinado artista, ou seja, a arte sendo tratada única e exclusivamente como um negócio.

A protuberância dos Titãs
Três bandas ainda conseguiram atravessar a década de 90 com prestígio, foram elas: Paralamas, Legião e Titãs, porém em 1992 com o lançamento de “Os Grãos”, “V” e “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, respectivamente as três bandas também se afastaram dos holofotes, pois os álbuns foram mal recebidos por público e crítica.

Os espaços para o rock só foram se abrir novamente com a geração seguinte, de Raimundos, Chico Science e Skank, sendo que os oitentistas só foram retomar o prestígio no começo do novo milênio, quando retornaram às paradas e foram postos na condição de clássicos, muito por conta do sucesso do formato Acústico Mtv, que tiveram gravações de Capital Inicial, Titãs, Ira, entre outros.


Considerações Finais

O autor na época do lançamento da 1ª edição
Ricardo Alexandre possui um texto fluente, sem firulas, daqueles que te prende até escrevendo receita de bolo. É verdade que o tema ajuda, a década de 80 foi fascinante, não à toa o interesse dos mais jovens é frequente e é a década mais lembrada em revivals e tudo mais. O fato é que o autor dividiu a obra em ordem cronológica e com capítulos curtos, falou de todas as grandes bandas surgidas e consagradas no período, uniu causos dos músicos que participaram de toda aquela agitação ao contexto político/econômico/social que o país viveu, formando, de forma despretensiosa um panorama sócio-cultural da década.

Algumas das bandas surgidas na época seguem como pilares do pop rock nacional, outras o tempo esqueceu e outras seguem a carreira nostálgica com retornos esporádicos. O fato é que é de se invejar quem teve oportunidade de experimentar viver num período de tanta ebulição cultural, de tanta gente bacana e interessante a frente das culturas de massas, rapaziada com a cabeça pra frente, se expressando de forma livre e sagaz pela primeira vez no país, gente por quem se orgulhar de ter como ídolos. Se olharmos o cenário pop atual, mesmo sem nenhum pingo de saudosismo, custamos a encontrar algo de espontâneo, com caráter cultural relevante ou até mesmo divertido. Qualquer um com mais de dois neurônios percebe como nossa cultura popular anda rasa.

A análise que fica é de se encontrar os porquês. Por que na década de 80 as pessoas se interessavam por letras inteligentes? Por que bandas tidas como alternativas vendiam centenas de milhares de discos? Por que os ídolos se manifestavam e tinham o que dizer? Por que as pessoas buscavam mais informação do que simplesmente absorviam o que chegava até elas? Não é simples identificar essas respostas, mas me parece que ficamos mais preguiçosos diante das facilidades da Internet, da comodidade das redes sociais, ficamos cercados pelos logaritmos de tudo que concordamos e aquilo fica martelando à sua cabeça em malas diretas e cantos de tela. O mundo é urgente. Qual a última vez que você ouviu um álbum inteiro de um artista? A relação com a música de uma forma geral mudou e não resta dúvidas que foi pra pior. Não só culturalmente como intelectualmente estamos retrocedendo, basta ver a intolerância, a violência e os comuns apelos pela volta do regime militar pra vermos que está acontecendo algo de errado no país e no mundo.

Esse livro é um suspiro de um tempo em que parecíamos que íamos finalmente decolar e virar um país bacana, mas assim como a decepção causada por Fernando Collor (o primeiro presidente eleito pelo povo de forma democrática após o fim do Regime Militar), os tempos modernos cantados por Lulu Santos parecem ter durado somente uma década.


David Oaski







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